domingo, 14 de abril de 2024

Como São Francisco domesticou o ferocíssimo lobo de Gubbio

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs




No tempo em que São Francisco morava na cidade de Gúbio apareceu no condado um lobo grandíssimo, terrível e feroz, o qual não somente devorava os animais como os homens, de modo que todos os citadinos estavam tomados de grande medo..

Frequentes vezes ele se aproximava da cidade; e todos andavam armados quando saíam da cidade, como se fossem para um combate; contudo quem sozinho o encontrasse não se poderia defender. E o medo desse lobo chegou a tanto que ninguém tinha coragem de sair da cidade.

Pelo que São Francisco, tendo compaixão dos homens do lugar, quis sair ao encontro do lobo, se bem que os citadinos de todo não o aconselhassem: e fazendo o sinal da santa cruz, saiu. da cidade com os seus companheiros, pondo toda a sua confiança em Deus. E temendo os outros ir mais longe, São Francisco tomou o caminho que levava ao lugar onde estava o lobo.

E eis que, vendo muitos citadinos, os quais tinham vindo para ver aquele milagre, o dito lobo foi ao encontro de São Francisco com a boca aberta: e chegando-se a ele São Francisco fez o sinal da cruz e o chamou a si, e disse-lhe assim:

“Vem cá, irmão lobo, ordeno-te da parte de Cristo que não faças mal nem a mim nem a ninguém”.

Coisa admirável! Imediatamente após São Francisco ter feito a cruz, o lobo terrível fechou a boca e cessou de correr; e dada a ordem, vem mansamente como um cordeiro e se lança aos pés de São Francisco como morto.

São Francisco e o lobo, catedral de Gubbio, Itália
São Francisco e o lobo, catedral de Gubbio, Itália
Então São Francisco lhe falou assim:

“Irmão lobo, tu fazes muitos danos nesta terra, e grandes malefícios, destruindo e matando as criaturas de Deus sem sua licença; e não somente mataste e devoraste os animais, mas tiveste o ânimo de matar os homens feitos à imagem de Deus; pela qual coisa és digno da forca, como ladrão e homicida péssimo: e toda a gente grita e murmura contra ti, e toda esta terra te é inimiga.

“Mas eu quero, irmão lobo, fazer a paz entre ti e eles; de modo que tu não mais os ofenderás e eles te perdoarão todas as passadas ofensas, e nem homens nem cães te perseguirão mais”.

Ditas estas palavras, o lobo, com o movimento do corpo e da cauda e das orelhas e com inclinação de cabeça, mostrava de aceitar o que São Francisco dizia e de o querer observar.

Então São Francisco disse: “Irmão lobo, desde que é de teu agrado fazer e conservar esta paz, prometo te dar continuamente o alimento enquanto viveres, pelos homens desta terra, para que não sofras fome; porque sei bem que pela fome é que fizeste tanto mal. Mas, por te conceder esta grande graça, quero, irmão lobo, que me prometas não lesar mais a nenhum homem, nem a nenhum animal: prometes-me isto?”

E o lobo, inclinando a cabeça, fez evidente sinal de que o prometia. E São Francisco disse: “Irmão lobo, quero que me dês prova desta promessa, a fim de que possa bem confiar“.

São Francisco e o lobo, EUA
E estendendo São Francisco a mão para receber o juramento, o lobo levantou o pé direito da frente, e domesticamente o pôs sobre a mão de São Francisco, dando-lhe o sinal como podia.

E então disse São Francisco: “Irmão lobo, eu te ordeno em nome de Jesus Cristo que venhas agora comigo sem duvidar de nada, e vamos concluir esta paz em nome de Deus”.

E o lobo obediente foi com ele, a modo de um cordeiro manso; pelo que os citadinos, vendo isto, muito se maravilharam.

E subitamente esta novidade se soube em toda a cidade; pelo que toda a gente, homens e mulheres, grandes e pequenos, jovens e velhos, vieram à praça para ver o lobo com São Francisco.

E estando bem reunido todo o povo, São Francisco se pôs em pé e pregou-lhe dizendo, entre outras coisas, como pelos pecados Deus permite tais pestilências; e que muito mais perigosa é a chama do inferno, a qual tem de durar eternamente para os danados, do que a raiva do lobo, o qual só pode matar o corpo; quanto mais é de temer a boca do inferno, quando uma tal multidão tem medo e terror da boca de um pequeno animal!

“Voltai, pois, caríssimos, a Deus, e fazei digna penitência dos vossos pecados, e Deus vos livrará do lobo no tempo presente, e no futuro do fogo infernal”.

E acabada a prédica, disse São Francisco: “Ouvi, irmãos meus; o irmão lobo, que está aqui diante de vós, prometeu-me e prestou-me juramento de fazer as pazes convosco e de não vos ofender mais em coisa alguma, se lhe prometerdes de dar-lhe cada dia o alimento necessário; e eu sirvo de fiador dele de que firmemente observará o pacto de paz”.

Então todo o povo a uma voz prometeu nutri-lo continuadamente. E São Francisco diante de todos disse ao lobo: “E tu, irmão lobo, prometes observar com estes o pacto de paz, e que não ofenderás nem aos homens nem aos animais nem a criatura nenhuma?”

E o lobo ajoelha-se e inclina a cabeça, e com movimentos mansos de corpo e de cauda e de orelhas demonstra, quanto possível, querer observar todo o pacto.

Mosteiro de São Bernardino, Hollidaysburg, PA, Estados Unidos
Província franciscana da Imaculada Conceição.
Disse São Francisco: “Irmão lobo, quero, do mesmo modo que me prestaste juramento desta promessa, também diante de todo o povo me dês segurança de tua promessa, e que não me enganarás sobre a caução que prestei por ti”.


Então o lobo, levantando a pata direita, colocou-a na mão de São Francisco.

Pelo que, depois deste fato, e de outros acima narrados, houve tanta alegria e admiração em todo o povo, tanto pela devoção do santo, e tanto pela novidade do milagre e tanto pela pacificação do lobo, que todos começaram a clamar para o céu, louvando e bendizendo a Deus, o qual lhes havia mandado São Francisco, que por seus méritos os havia livrado da boca da besta cruel.

E depois o dito lobo viveu dois anos em Gúbio; e entrava domesticamente pelas casas de porta em porta, sem fazer mal a ninguém, e sem que ninguém lho fizesse; e foi nutrido cortesmente pela gente; e andando assim pela cidade e pelas casas, jamais nenhum cão ladrava atrás dele.

Finalmente, depois de dois anos o irmão lobo morreu de velhice: pelo que os citadinos tiveram grande pesar, porque, vendo-o andar assim mansamente pela cidade, se lembravam melhor da virtude e da santidade de São Francisco.

Em louvor de Cristo. Amém.




CRUZADAS CASTELOS CATEDRAIS HEROIS ORAÇÕES CIDADE SIMBOLOS
AS CRUZADASCASTELOS MEDIEVAISCATEDRAIS MEDIEVAISHERÓIS MEDIEVAISORAÇÕES E MILAGRES MEDIEVAISA CIDADE MEDIEVALJOIAS E SIMBOLOS MEDIEVAIS

domingo, 7 de abril de 2024

Frei Garin e os artifícios do diabo

Montserrat, panoramica
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs




Em 859, sendo Conde de Barcelona Vifredo o Zeloso, havia na montanha de Montserrat um anacoreta chamado Garin, que possuía grande virtude e piedade.

Todas as manhãs subia nos picos das montanhas, para louvar a Deus em sua grandeza, e quando voltava à sua gruta o sino da igreja de São Acisdo tocava sozinho para saudá-lo.

O demônio, muito contrariado, se propôs a perdê-lo, e para isto empregou todas as suas armas.

Uma manhã, Frei Garin subiu a São Jerônimo, o pico mais alto de Montserrat, com o afã de ver mais de perto o céu, de sentir-se mais próximo de Deus.

Porém, naquele dia, pela primeira vez, o demônio o tentou a olhar para o lindo campo, em vez de olhar para o céu.

Contemplou longamente as serras de Valência e de Aragão. Embevecido, avistou Mallorca e os campos de Catalunha. Ao ver-se acima de todos, sentiu-se orgulhoso de sua própria grandeza.

Dominava tudo, tudo podia contemplar. Sentia-se dono de tudo.

Montserrat, panoramica

Naquela manhã, quando desceu até sua gruta, depois de ter rezado com menos devoção que de costume, o sino de São Acisdo tocou, em lugar dos habituais toques alegres, um som triste, como de lamento.

O demônio descobriu que o anacoreta não era invulnerável a defeitos e debilidades humanas.

Ao pé da montanha de Montserrat abre-se um poço que ainda hoje se chama do diabo.

Desse poço, Lúcifer saiu uma tarde para traçar planos com o demônio que havia enviado contra o anacoreta.

Lúcifer ordenou ao diabo que fosse ao palácio do Conde de Barcelona, o famoso palácio de Validauva, e se apossasse do espírito de Riquilda, a filha do Conde, que era uma jovem riquíssima e virtuosa.

Feito isto, o diabo devia sugerir ao conde que unicamente a oração de Frei Garin diante de Riquilda, em Montserrat, durante nove dias, poderia livrá-la do espírito do mal.

Lúcifer reservou também a si um importante papel. Disfarçado de ermitão, se dirigiu à montanha.

Escolheu uma gruta entre as muitas que há entre as rochas, e esperou um momento oportuno para sair ao encontro de Frei Garin.

Ao cair da tarde do dia seguinte, o viu subir a São Jerônimo. Fingindo que rezava, foi ao seu encontro.

Frei Garin, surpreendido ao vê-lo, perguntou quando havia vindo a Montserrat. O falso frade, mentindo, lhe disse que há trinta anos fazia penitência naquela abrupta montanha.

Levou-o à sua gruta, onde só faltava a cruz. Quando Frei Garin notou isto, o velho ermitão lhe disse que as cruzes e imagens custavam muito dinheiro, o que ele não tinha.

Por outro lado, a grandeza de Deus era tanta, que lhe parecia pouca coisa venerar as imagens. Deus também não poderia encerrar-se em quatro paredes.

Seu altar eram aquelas tremendas montanhas. Seu templo, o universo. Assim, nesse tom, continuou falando o velho "ermitão", conquistando por completo o coração puro e bondoso de Frei Garin, que o escutava entusiasmado.

Desde aquele dia, todas as tardes subia o jovem para consultar o velho em suas dúvidas, suas vacilações, sobretudo quanto ao que sentia e pensava.

Entretanto, no palácio de Validauva estava Riquilda vestindo-se uma manhã, para dirigir-se à igreja e fazer suas orações.

Tinha a janela aberta, e por ela entravam e saíam livremente os pássaros.

Entre eles entrou um pardal, que se aproximou da jovem e cantou ao seu ouvido alegres cânticos, inspirando-lhe estranhos pensamentos e sensações que nunca tinha tido.

Olhou-se no espelho e sentiu-se mais bela do que de costume. Instintivamente se adornou com colares de pérolas e jóias que nunca usava. Para pôr o colar, tirou a cruz benta que levava desde que nascera.

No mesmo momento caiu, rolando pelo chão. Empalideceu e começou a soltar horríveis gritos.

A condessa, assustada, correu ao quarto de sua filha. Ao vê-la em convulsões, como se estivesse sofrendo grandes dores, chamou um médico judeu de grande talento e fama.

O médico, depois de examinar a enferma, declarou que aquele mal não podia ser curado pela medicina. Riquilda estava possessa.

Todo o palácio era dor e consternação. Por ordem do Conde Vifredo, que muito gostava de Riquilda, tomaram a jovem e a levaram à catedral bizantina.

Ali ataram-na numa coluna, ante o altar da cripta.

O velho sacerdote cingiu a cintura de Riquilda com uma estola e ordenou ao diabo que abandonasse o corpo da jovem.

Então, ante o terror e a surpresa de todos, ouviu-se uma voz rouca e profunda, que dizia que somente abandonaria o corpo da jovem se fosse ordenado a Frei Garin, o anacoreta de Montserrat, que ficasse rezando aos pés de Riquilda durante nove dias e nove noites.

Ao ouvir estas palavras, o Conde Vifredo ordenou que se organizasse imediatamente a procura de Frei Garin.

Por fim encontraram-no, e disseram-lhe a condição que o demônio havia imposto para sair do corpo da jovem.

Frei Garin foi até o velho ermitão, para consultá-lo sobre a delicada questão. Este, logo ao ouvir o problema, recomendou que sem demora Frei Garin cumprisse o que o demônio havia proposto.

Inclusive ele, o velho ermitão, o acompanharia nesta ocasião durante os nove dias e nove noites.

Assim, Frei Garin começou a rezar diante da jovem condessa, a fim de terminar a possessão. E Lúcifer começou a tentá-lo, para que pecasse com a jovem.

Frei Garin, através da oração, resistiu fortemente, mas pouco a pouco, esquecendo-se de sua fraqueza, de sua contingência, foi cada vez mais confiando em suas próprias forças, até que no nono dia ele cedeu à tentação e pecou com a jovem.

Nisto chegou o velho falso ermitão. Logo que o viu, Frei Garin, arrependido, correu para contar-lhe o sucedido.

O velho disse então que só haveria perdão se Frei Garin matasse a jovem e a enterrasse ali mesmo.

Diante do velho ermitão, Frei Garin, com um punhal, matou a jovem Riquilda.

Depois os dois a enterraram, e no momento em que sobre a pobre donzela caía a última porção de terra, o velho ermitão, transformando-se de novo em demônio, estalou em uma sonora gargalhada, que retumbou lugubremente por toda a montanha.

Frei Garin compreendeu então que havia sido vítima de um engano horroroso. Mas isso não reduzia em nada a maldade de seu duplo pecado.

O penitente caiu sobre a tumba, chorando desesperadamente, e ouviu o sino de São Acisdo, que sozinho tocava finados pela morte da filha do conde.

Frei Garin partiu na mesma noite a caminho de Roma, para pedir perdão a Deus.

Pelo mesmo caminho que fez para chegar à cidade eterna, retornou depois andando de quatro, cumprindo a penitência imposta pelo Santo Padre.

Pois, como havia pecado como animal, como animal devia viver, comendo ervas e raízes que arrancasse do chão com os dentes, até que Deus ordenasse outra coisa.

Atravessou o Llogrebat e voltou à sua gruta, onde encontrou o crucifixo no chão.

Desde então, todos os dias chorava Frei Garin, recordando seus pecados. Também choravam os condes no palácio de Valudauva, em Barcelona, pelo estranho desaparecimento de sua filha, que não conseguiam entender.

Nada sabiam de Riquilda e de Frei Garin, até que um dia, saindo Vifredo nos arredores de Montserrat, se aproximou do lugar onde se havia despedido de sua filha meses antes. Ali chorou o conde abundantemente.

Nossa Senhora dos Desamparados, ValenciaDe repente, muito perto do lugar onde estava o conde, soou um corno de caça. Correu o conde pressuroso, e viu seus cavaleiros que estavam encurralando um estranho animal desconhecido.

Vendo que não era uma fera, o laçaram e levaram arrastando até Barcelona. Ali o deixaram abandonado num canto do palácio, porque outro acontecimento mais importante chamou a atenção do conde.

A condessa deu à luz um menino. O batismo foi celebrado com grande pompa, e ao serem cantadas as gestas do conde, entre as quais figurava a morte do dragão em São Lourenço, recordaram-se do monstro que haviam capturado em Montserrat.

O conde pediu que o trouxessem, para observá-lo. Feito isto, todos o contemplaram com admiração.

Alguns achavam que tinha certa semelhança com um homem; outros, que sua maneira de andar lembrava um urso. O monstro aceitava as carícias humildemente e beijava os pés de seus convidados.

Entretanto, acordou o recém-nascido, e abrindo os olhos, contemplou longamente o monstro. Ante a surpresa geral, falou o recém-nascido:

— Levanta-te, Frei Garin, que Deus já te perdoou.

Levantou-se então Frei Garin, deixando a todos consternados. O conde pediu contas do paradeiro de sua filha. Frei Garin lhe contou que estava morta, e pediu castigo para seu horrendo crime.

O conde, magnânimo, perdoou a quem Deus já havia perdoado.

Os condes quiseram que se rezasse uma Missa no lugar onde descansavam os restos mortais de sua filha. Anos mais tarde se erigiu ali um mosteiro de monjas beneditinas, em memória da filha do conde.


(Fonte: V. Garcia de Diego, "Antología de Leyendas de la Literatura Universal" - Labor, Madrid, 1953)


CRUZADAS CASTELOS CATEDRAIS HEROIS ORAÇÕES CIDADE SIMBOLOS
AS CRUZADASCASTELOS MEDIEVAISCATEDRAIS MEDIEVAISHERÓIS MEDIEVAISORAÇÕES E MILAGRES MEDIEVAISA CIDADE MEDIEVALJOIAS E SIMBOLOS MEDIEVAIS

domingo, 31 de março de 2024

Como Nossa Senhora converteu um mouro

Nossa Senhora com o Menino Jesus. Barnaba da Modena (1328-1386), Museu do Louvre, Paris.
Nossa Senhora com o Menino Jesus.
Barnaba da Modena (1328-1386), Museu do Louvre, Paris.
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs




Cantiga 46 do rei de Castela Alfonso X, o Sábio. Cantigas de Santa María

Esta Cantiga conta como a imagem de Santa Maria, que um mouro guardava com honra em sua casa, deu leite pelos seus peitos.




Para que sejam mais conhecidos seus milagres, a Virgem faz alguns diante de homens sem fé.

E isto aconteceu como vou contar-vos e como o apreendi. Um mouro com grande hoste de Ultramar foi guerrear contra os cristãos e roubar os desprevenidos.

Aquele mouro fez estragos nas terras em que pôde entrar, e tudo o que roubou levou consigo. E muito satisfeito levou tudo à sua terra, para repartir todos os objetos roubados que tinha coletado.

Daquele conjunto que repartiu, guardou para si uma imagem da Virgem que lhe pareceu não ter igual, e depois de examiná-la muito, a fez preservar e guardar envolvida em panos de ouro.

Com frequência ia vê-la e, de si para si, dizia e raciocinava que não podia acreditar que Deus tivesse querido se encarnar e tomar carne de uma mulher.

“Perdidos estão todos aqueles que acreditam nisso”, dizia ele, “porque não consigo entender que Deus se desse tanto trabalho, nem que se humilhasse tanto.

“Pois ele que é tão grande não pode se encerrar no corpo de uma mulher e andar suando entre gente baixa, como dizem que andou para salvar o mundo.

“Mas, se de tudo isso que Ele mostrou, Ele quisesse vir até mim para me mostrar, eu me tornaria cristão logo e sem demora, e receberia o crisma junto com esses mouros barbudos”.

Mal pôde continuar o mouro com esses raciocínios, quando viu os dois peitos da imagem, como sendo de viva carne, dos quais emanava leite.

Quando viu coisa semelhante, sem mentir se pôs a chorar e fez vir um clérigo que o batizou. E depois disso, sem falta, fez que os seus se tornassem cristãos e, além do mais, praticou outras obras boas conhecidas.


Video: Cantiga 46 de Santa Maria






CRUZADAS CASTELOS CATEDRAIS HEROIS ORAÇÕES CIDADE SIMBOLOS
AS CRUZADASCASTELOS MEDIEVAISCATEDRAIS MEDIEVAISHERÓIS MEDIEVAISORAÇÕES E MILAGRES MEDIEVAISA CIDADE MEDIEVALJOIAS E SIMBOLOS MEDIEVAIS

domingo, 24 de março de 2024

O briguento e sua sombra

Doidos briguentos, capela de La Manta, 1420
Doidos briguentos, capela de La Manta, 1420
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs





Fala para mim se há algo mais pesado que a areia, que o chumbo ou que a massa de ferro.

Sim há. Sabes o que é?

É o homem briguento.

Esse é o pecado mais fátuo, doido e grave que se possa cometer.

E quem fica nele, enquanto não sai desse pecado, não pode se salvar.

Ó briguento, tu és semelhante ao frenético que não respeita ninguém. Esse mataria seu pai, sua mãe e seus irmãos do mesmo jeito que sacrificaria um animal.

E como eu sei disso, posso falar aqui ousadamente e com verdade.

Eu já estive num local em que os próprios religiosos se atacaram para matar uns aos outros.

Vós não percebeis que procedeis pior que os lobos e que os cachorros?

Quereis ver como eu digo a verdade?

Vós podeis vê-la na vossa experiência.

O cão não come a carne de outro cão, tampouco o lobo come a carne de outro lobo, nem mesmo o leão come outro leão, e assim fazem todos os animais.

O briguento age de tal maneira mal que se o irmão, o filinho ou o pai estão contra ele, ele se engenharia para assassiná-los.

Queres ver? Eu quero te contar um exemplo, ó briguento, e tal vez com ele vais pensar melhor.

Houve um louco que caminhava rumo ao oeste e levava uma longa marreta na mão, enquanto que o sol lhe batia nas costas e projetava sua sombra diante dele.

Assim que ele percebeu essa sombra, lhe pareceu que fosse um outro que andava com um bengala na mão como tinha ele.

Então saiu correndo atrás desse outro para lhe dar uma marretada. Porém, a sombra corria do mesmo jeito que ele.

E após ter corrido uma boa distância sem conseguir alcançá-la, ele parou de esgotamento.

Cena de uma revolta camponesa, Jean Froissart  (1337-1405)
Cena de uma revolta camponesa, Jean Froissart  (1337-1405)
Depois se pôs novamente em pé e recomeçou a correr para atingir sua sombra. Até que enfim após correr mais um tanto, chegou a uma curva onde a sombra ficou de lado.

Foi atrás dela até encontrar uma grande pedra onde a sombra tinha ficado ereta e fixa.

Assim que a viu parada com uma bengalona na mão ele foi por cima dela e se assanhou tanto contra sua sombra que acabou se dando uma pancada e rompeu a própria cabeça.

Assim fazem os que brigam. Doidinhos, que por pura insânia quebram sua cabeça e a de todos que estão perto deles!

Ah! Se eu fosse o imperador! Mas me falta o cetro de mando.

Eu os deixaria sem comer. Sim, até que eles abandonem esse pecado. Porque do contrário não se reconciliam jamais e morrem desesperados.

Então, caro briguento. Não queiras te desesperar. Arrepende-te e faz o que eu te ensino.


(Autor: São Bernardino de Siena, “Apologhi e Novellette”, Intratext)



CRUZADAS CASTELOS CATEDRAIS HEROIS ORAÇÕES CIDADE SIMBOLOS
AS CRUZADASCASTELOS MEDIEVAISCATEDRAIS MEDIEVAISHERÓIS MEDIEVAISORAÇÕES E MILAGRES MEDIEVAISA CIDADE MEDIEVALJOIAS E SIMBOLOS MEDIEVAIS

domingo, 17 de março de 2024

A Ponte do Diabo em Thueyts

Igreja da cidadinha de Thueyts
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs





Em Ardèche, a pequena cidade de Thueyts parece muito calma. Mas essa tranquilidade esconde um terrível segredo.

Na origem dele está uma ponte muito antiga que atravessa o rio Ardèche.

Há muito tempo, um casalzinho de adolescentes de Thueyts ficou secretamente namorado. E combinaram de se encontrar numa pequena mata.

Essa mata era bonita e muito cheia de folhas, mas ficava de outro lado do rio e não havia ponte. A única solução era caminhar três léguas para cruzar pela ponte da cidade vizinha.

A solução era fatigante.

Um belo dia, o rapaz foi até o córrego e tempesteou violentamente dando fortes brados:

‒ “A quem lhe ocorreu fazer este barranco de pedra? Por acaso nós somos amaldiçoados para não termos uma ponte igual que nossos vizinhos? Não é justo!”

“O que te falta para ter a felicidade, meu maravilhoso amigo?”
Subitamente, vindo de não se sabe onde, um curioso personagem aproximou-se do moço louco de sentimentalismo:

‒ “O que te acontece meu amigo”, sussurrou melosamente o desconhecido.

‒ “Bem, nada, apenas um desabafo” respondeu o doido de amor.

‒ “Chega disso meu jovem companheiro. Como é que um rapaz tão belo, tão forte, tão inteligente e tão esperto pode lamentar alguma coisa?”

O moço sentiu o peito estufar.

‒ “O que te falta para ter a felicidade, meu maravilhoso amigo?”, prosseguiu o singular ignoto.

‒ “Nada que tu possas fazer!”, exclamou o inexperiente.

‒ “Você acredita? Eu tenho muitos colegas que me ajudam com frequência, e nada me é impossível!” gracejou o forasteiro.

‒ “Uma ponte! Eu quero uma ponte! Aqui! Onde nós estamos! Mas, isso é uma tarefa impossível”, gemeu exasperado o jovem seduzido.

‒ “Ohhhh, só isso! Não há nada mais fácil!”

O bisonho galante não era tão bobo e percebeu que aquela figura esquisita era um enviado satânico. Mas, ele quis mostrar perspicácia e respondeu:

A ponte do conto, Thueyts
‒ “Eu acho que você quer me pedir algo em troca, ide satanizar outro, bom homem”, disse achando ter feito um belo jogo de palavras.

‒ “Nada disso, eu só tenho vontade de vos agradar”.

‒ “O quê?” falou surpreso o jovem melado.

‒ “Agora eu tenho que partir. Já é tarde, mas eu voltarei”, murmurou o ser misterioso com voz que parecia sair de um túmulo.

Alguns dias depois, os habitantes de Thueyts descobriram uma ponte que atravessava magnificamente o rio Ardèche. Os apressados amantes foram os primeiros a testá-lo. Porém, nunca voltaram.

Desde aquele dia, o povo está convencido que os casais adolescentes que o atravessam desaparecem.

Alguns pensam no diabo. O pároco lembra sempre aos fiéis que Deus pune aqueles que alimentam amores ilegítimos.

E nas noites em que o vento bate com força, os velhos habitantes dizem ouvir os gemidos dos precitos no inferno.



CRUZADAS CASTELOS CATEDRAIS HEROIS ORAÇÕES CIDADE SIMBOLOS
AS CRUZADASCASTELOS MEDIEVAISCATEDRAIS MEDIEVAISHERÓIS MEDIEVAISORAÇÕES E MILAGRES MEDIEVAISA CIDADE MEDIEVALJOIAS E SIMBOLOS MEDIEVAIS